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Educador destaca poder do currículo oculto para "dizer não"

Para Michael Apple, da Universidade de Wisconsin, professor precisa ser perturbado a recusar ofensiva conservadora na educação.
Katarina Ribeiro Peixoto 30/07/2004  

Porto Alegre - Passamos muito tempo denunciando o neoliberalismo e não conseguimos perceber que a direita mudou. E é preciso aprender com a direita, não regressivamente, mas progressivamente. A direita compreendeu que precisa mudar e para isso resolveu apoderar-se das expressões e palavras que sempre estiveram com a esquerda, como democracia, participação, solidariedade etc. O resultado dessa apropriação é a dissolução do sentido dessas coisas, inclusive para aqueles que se consideram democráticos. A avaliação é do professor de ensino e currículo de políticas educacionais da Universidade de Wisconsin, Michael Apple, que, durante conferência no Fórum Mundial de Educação, propôs um conjunto de problemas que desafiam a pauta comum dos debates sobre educação e poder. Segundo ele, o problema do poder, como dominação hegemônica, não é tratado como algo estranho às escolas, que se lhes impõe de fora para dentro. Tampouco como se fosse um desconhecido dos próprios professores, uma vez que estes se considerem democráticos.

Apple iniciou sua fala pedindo desculpas ao público pelo governo e pelo sistema educacional de seu país. "Chamamos nosso presidente de nosso residente. Ele pede desculpas por não se encontrar aqui, mas é que ele é presidente e não tem tempo para debater conosco. Mas tenho certeza que ele está nas suas mentes, tanto como na minha". Ao contrário de um mero show retórico, Apple ofereceu um espetáculo de coerência argumentativa e performativa, raramente presente nos debates da esquerda. O ponto de partida de sua argumentação, explicada minuciosamente, na segunda conferência do III FME (Conhecimento, Poder e Emancipação) foi uma provocação. O que o interessa, afinal, não é dizer aos professores o que fazer com suas dificuldades, oferecendo-lhe receitas, mas desafiá-los, perturbá-los e convocá-los a dizer "não", coletiva e organizadamente, à doutrina oficial imposta por uma direita mais conservadora, mais criativa e ainda mais poderosa.

Onde está o poder?
Para isso, considerou a seguinte situação: ele, pesquisador já há alguns anos afastado das salas de aula com crianças e jovens, retorna a uma sala de aula numa favela com um problema matemático de difícil solução. Então, um aluno se levanta e diz que sabe resolvê-lo. "Eu reajo com surpresa. Sei que esse aluno, que parte de uma favela, que não teve as mínimas condições de aprendizado, não poderia dar conta desse problema. Pois o que pergunto é: reagiria da mesma forma numa escola que atendesse a alunos de classe média? Não". Isso de fato ocorreu, na África do Sul, poucos anos atrás, numa pesquisa de campo do professor. E é desse juízo prévio dos professores que Apple se ocupa, para tratar a educação como um ato essencialmente político.

A educação é um ato político, segundo ele, sob vários aspectos. E para compreender as mudanças de rumo da educação é preciso ter em conta essa sua característica central. Se a educação é um ato político, é, afinal, um centro de irradiação de poder. Mas isso não é simples. "Nos acostumamos com uma divisão entre conhecimento oficial e seu outro, o conhecimento popular", onde um conjunto de conhecimentos é considerado "oficial" porque é dominante, observa o professor norte-americano. "Mas o que me ocupa, aqui, é o ‘currículo oculto‘", esse que habita as mentes e comportamentos dos professores em sala de aula, na escola e na sociedade. E é nesse contexto que o exemplo acima faz sentido. Pois bem, em que sentido a educação é essencialmente um ato político? E quais as relações de força que estão condicionando as mudanças na educação hoje?

Para Apple, a educação tem funcionado com um meio de selecionar as pessoas através de uma suposta "pacificação” das diferenças entre elas. A educação, em segundo lugar, é também um cenário no qual as mulheres têm desempenhado um papel fundamental. Além disso, a educação tem sido, especialmente nos EUA, vilipendiada por cortes orçamentários de vulto, em favor do alto financiamento armamentista do país. "Mas há ainda uma última forma em que a educação é política: quem tem a voz, quem está fazendo a educação. E é por isso que Porto Alegre está dando um exemplo para o mundo". Para o professor, o Brasil se tornou um professor-mundo. "Especialmente nesta cidade, onde políticas importantes estão sendo construídas. Por isso, insisto que lembremos do que está sendo feito aqui". Mas essas não são questões novas, disse Apple, não são problemas nem soluções desconhecidas para os educadores.

O novo "guarda-chuva" neoliberal

O que é novo, segundo ele, é o modo como a direita tem atuado em relação à educação. E alertou: "Se quisermos mudar, temos de analisar como a direita funciona e como eles chegaram ao sucesso. A direita sabe que para vencer no Estado precisa vencer na educação. Infelizmente, a direita entendeu melhor isso que a esquerda. A direita compreendeu que precisa mudar". Mas, como se deu esse "aprendizado" dos setores dominantes? Apple propôs uma metáfora de um guarda-chuva para explicitar essa mudança. "Os grupos dominantes têm um esforço de consenso via educação: alcançar o entendimento real das pessoas. E a direita tem sido extremamente criativa nisso. Até porque os grupos dominantes perceberam muito bem que estava chovendo fora do seu guarda-chuva." Mas em que consiste, exatamente, o guarda-chuva ideológico da direita? Para o professor, esse guarda-chuva contém quatro poderosos grupos: os neoliberais dos anos 90, os neoconservadores, que não abdicam, nem discursivamente, do Estado, os populistas autoritários e o que chama de a nova classe média profissional.

O primeiro grupo se caracteriza por um conjunto de poderosas crenças simples. Assim, a administração pública se apresenta como um buraco negro, onde o investimento se dá, sempre, a fundo perdido. Acreditam na ficção de um Estado fraco, mas querem um Estado forte para assegurar os mercados e controlar a visão das pessoas. Essa concepção, predominante nos anos 90, gerou um estado de coisas que Apple descreve assim: "Nos EUA eles estão muito interessados hoje em dar comida, cobertores e abrigo aos pobres, principalmente aos negros pobres. Por isso, estão encarcerando todos os que não participam da sua ficção". O segundo grupo é o dos neoconservadores. Eles acreditam num Estado forte e na "devolução da cultura ‘real‘ dos americanos para os americanos". Querem um Estado forte, com controle de conhecimento, nacionalização dos currículos (o que já está ocorrendo hoje nos EUA). Estão absolutamente centrados nos testes e avaliações nacionais segundo o currículo unificador nacional. Pretendem, assim, disseminar um conhecimento fraco, pacificador e uniformizante.

Onde Deus fala inglês

O terceiro grupo, o dos populistas autoritários, tem uma radicalidade própria. "Deus fala inglês e o capitalismo é o sistema econômico divino. Os negros são aqueles que Deus marcou". E, disse ainda o professor, "se vocês acham que isso é inconseqüente, lembrem que quem ocupa a Casa Branca hoje é desse grupo. A guerra ao Iraque, por isso, não é somente em torno do petróleo, ela gira também em torno da religião". E há também o que ele chamou de nova classe média profissional. Essa classe média, que compõe o quarto grupo de poder, se caracteriza pela atual ocupação de postos no Estado. Seu capital, segundo Apple, "é o capital da estrutura". É sua competência técnica que está ocupando lugar. Mas há um paradoxo no interior dessa imersão da classe média nas estruturas do Estado. Esse paradoxo é dado pelo alargamento do sistema educacional. Se hoje as classes populares estão contempladas de forma inédita no sistema educacional, o capital que o conhecimento da classe média representava foi fortemente desvalorizado.

Uma das conseqüências disso é, segundo Apple, que o capital dessa classe é reduzido aos sistemas de avaliação que o poder hegemônico impõe. "Hoje, o que se move em sala de aula tem de ser avaliado, medido". Essa é uma faceta do quanto o capital social da classe média está valendo menos. Por mais que se trate de uma questão parcial, o professor salientou que essa classe tende a manter, a conservar, nela, seus descendentes. E então, tende, como, inclusive, professores das redes do sistema de ensino, a perpetuar a uniformização e o controle indiscriminado a que estão se submetendo, à medida que perdem capital.

Significantes escorregadios: capitalismo na economia e comunismo na cultura

Qual a faceta mais comum desses grupos? Para Apple, o que unifica esses grupos é que eles gostam de coisas simples. Acreditam na racionalidade da economia, recusando, portanto, a necessidade da crítica social. Segundo eles, então, a democracia se trata do empoderamento de consumidores. E como fazem valer suas crenças simples? Tomando para si os significantes da crítica, para dominá-los. Isso implica tomar a democracia não como um conceito político, mas econômico. "Para eles, o mundo é um grande supermercado. Essa é uma metáfora real, assim como é real que a maioria das pessoas não pode comprar nesse grande supermercado. Elas podem, na verdade, consumir as imagens desse supermercado". A classe média, que ainda pode consumir mais que imagens, usa esse consumo também para segregar. E assim reproduz uma cultura fascista, sustenta Apple, segundo a qual o conhecimento não é real, não é "de tudo", não é do funcionamento das coisas. A força dessas idéias simples aparece na atual política educacional do governo Bush. "Temos um novo currículo nacional na minha nação, que diz que todos éramos iguais no passado. Temos o capitalismo na nossa economia e o comunismo na nossa cultura. Como se sabe, na realidade, os índios, que vieram da Sibéria, só sofreram porque foram congelados e nós, que somos muito solidários, distribuímos cobertores quando eles pegaram sarampo", ironizou Apple. E questionou: "De quem é esse currículo? De quem é esse passado?"

A esperança nos professores do mundo

"Nos EUA reclamamos que não há fundos para a educação. A maior nação não tem isso. Nesta cidade também não tem isso." Mas, observou: "nós estamos na cidade da escola cidadã, do Orçamento Participativo. Então, vocês podem ensinar ao mundo como interromper o neoliberalismo. E eu gostaria de agradecer-lhes por vocês serem os professores do mundo". E, concluiu sua fala com uma simples recomendação: organizar-se coletivamente, não ficar sozinhos, não sucumbir à desagregação das "pacificações" do consumo imagético para, de maneira clara e tão simples como o faz a direita, dizer "não".

Michael Apple é autor dos seguintes livros: Ideologia e Currículo (Brasiliense); Educação e Poder; Trabalho Docente e Textos (Artes Médicas); Conhecimento Oficial (Vozes); Política Cultural e Educação (Cortez) e, também, Educando à Direita.

*. Especial para a Agência Carta Maior

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